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Friday, 4 February 2011
Escuela de Calor en Portuguese Escola
No texto chamado "Do Pedantismo", Michel de Montaigne busca refletir acerca da distinção entre erudição e sabedoria[1]; o que pode parecer um pouco estranho, pois geralmente elas não parecem ser coisas distintas, ou seja, uma pessoa sábia é uma pessoa erudita.Contudo, essa distinção parece ser bem clara para o filósofo francês, se entendermos erudito como alguém que apenas domina um conhecimento, alguém que apenas ostenta o conhecimento como um bem cultural – uma bagagem cultural como normalmente as pessoas dizem. Nesse caso, portanto, aquela educação que tenha como fim apenas a retenção de conhecimento – apenas encher a nossa "bagagem" – seria uma educação pedante, visto que,não nos tornaria homens melhores[2], não nos prepararia para a vida.
Ainda assim, no entanto, essas duas definições, de sabedoria e de erudição, onde a primeira estaria relacionada à qualidade do conhecimento e a segunda à quantidade do conhecimento, sendo que a primeira tem mais valor do que a segunda para o filósofo, parece ser muito arbitrária, pois: o que nos garante esse valor maior de uma em relação a outra? Que razões o filósofo tem para determinar que o que importa é aquilo que nos prepara para a vida? Será que a mera erudição não nos prepara para a vida também? Que vida é essa e o que significa nos tornarmos homens melhores? O mais certo, todavia, é que não encontraremos nesse texto - aliás, em nenhum ensaio de Montaigne -, a pretensão de chegar a uma verdade absoluta, mas sim, apenas o ponto de vista de uma pessoa que está se "fazendo" no próprio ato de escrever, que está se experimentando, como fica claro na advertência ao leitor: "Quero que me vejam aqui em minha maneira simples, natural e habitual, sem apuro e artifício: pois é a mim que pinto. Nele meus defeitos serão lidos ao vivo, e minha maneira natural, tanto quanto o respeito público mo permitiu"(Montaigne, p. 4). Portanto, quando nos direcionamos ao texto de Montaigne, precisamos ter uma outra postura filosófica que não aquela que faz análises minuciosas do texto, buscando uma argumentação exaustiva em prol de uma tese. Ao contrário, o filósofo propõe uma outra filosofia, em seu conteúdo e sua forma – uma filosofia que mais é uma efetivação do "conhece-te a ti mesmo" socrático, onde o desenvolvimento do próprio pensamento é a busca por sua própria identidade, e isso, com certeza, é a sabedoria e a radicalidade do pensamento de Montaigne em seu tempo.
Essa breve digressão não foi à toa, ela apenas serve para conter as nossas pretensões filosóficas, que tentam muitas vezes tirar de um texto aquilo que ele não tem. Além disso, acreditamos que ela também nos serve para dar uma pista acerca da ideia de sabedoria que o filósofo tem em mente, tendo em vista que, a verdadeira sabedoria é saber buscar em si mesmo as respostas, sem depender de ninguém, como ele mesmo afirma, criticando o tipo de ensino de sua época:
"Tanto nos deixamos levar nos braços de outros que anulamos nossas forças. Desejo armar-me contra o temor da morte? Faço-o à custa de Sêneca. Quero obter consolação para mim ou para um outro? Tomo-a emprestada de Cícero. Tê-la-ia buscado em mim mesmo se me tivessem treinado para isso. Não gosto dessa competência relativa e mendigada" (Idem, p. 205).
Ora, parece de alguma forma que Montaigne está antecipando aquilo que é caracterizado por Immanuel Kant por esclarecimento, isto é, poder fazer uso de sua própria razão sem auxílio de outrem. Todavia, não podemos meramente proclamar o filósofo francês como o antecipador da Modernidade, não que talvez não tenha sido, mas porque não é esse o nosso propósito. O que nos interessa, nesse caso, é perceber que a própria concepção de ensaio, sendo uma experiência de si mesmo, é o movimento de uma pessoa que serve-se do seu próprio entendimento, ou seja, que a partir daqueles conhecimentos que detém, cria formas de ver e viver o mundo, tentando fugir da imagem social do sábio, que seria o erudito; portanto, sabedoria seria poder ir além de "todas formas de socialização que nos alienam e trivializam" (FETZ, 2003, p. 222). Por isso, podemos perceber o fenômeno do pedantismo como algo social induzido por um tipo de educação da época, podemos ver, então, o ensaio de Montaigne como uma crítica ao ensino ainda por demais escolástico de sua época e, ao mesmo tempo, uma tentativa de fugir desse, pois não é por acaso que em uma parte do texto o próprio filósofo se questiona se ele mesmo não estava sendo pedante[3], isto é, se ele não estava se utilizando das mesmas "regras do jogo" que ele mesmo estava a questionar.
O pedante ostenta um conhecimento aparente que não tem valor; entretanto, essa desvalorização é dada por Montaigne, pois ele vê nesse tipo de conhecimento uma desvinculação com a vida prática; portanto, esse tipo de conhecimento não tem valor ético nenhum. Porém, é esse o tipo de conhecimento que mais tem valor para as pessoas, ou seja, o filósofo está valorizando aquilo que não tem valor social em seu tempo, como ele mesmo diz: "Proclamai a nosso povo, sobre um passante: ‘Oh, que homem sábio!’ E sobre um outro: ‘Oh, que homem bom!’ Eles não deixarão de voltar os olhos e o respeito para o primeiro. Seria preciso um terceiro pregoeiro: ‘Oh, que cabeças estúpidas!’ Facilmente perguntamos: ‘Ele sabe grego ou latim? Escreve em verso ou prosa?’ Mas se ele se tornou melhor ou mais ponderado, isso era o principal e é o que fica por último. Seria preciso perguntar quem sabe melhor, e não quem sabe mais"(MONTAIGNE, p. 203).
O pedantismo se transforma aqui em condição social, pois ao valorizar o conhecimento aparente, aquele que apenas nos torna mais sábios – sábio no sentido de dominar um certo conhecimento apenas teórico –, as pessoas, na medida em que valorizam a aparência, são pedantes. Por isso, devemos entender a crítica de Montaigne ao pedantismo como uma crítica à cultura do século XVI. Todavia, essa crítica ao qualificar um determinado tipo de conhecimento como o mais importante, o melhor, cai no problema de pensar uma natureza humana, pois, o que significa se tornarmos homens melhores? Qualquer reflexão acerca da moral diz respeito a um ponto de vista sobre o que é o humano; portanto, precisamos de alguma forma entender que tipo de homem Montaigne tem em vista para podermos entender o alcance de sua crítica.
A questão acerca da natureza humana não é de simples resolução, no caso de Montaigne, parece que essa natureza é algo a se buscar, como se em cada pessoa houvesse uma natureza que seria uma potência de criação de si mesmo, já não é uma natureza que visa a um fim, como é na perspectiva aristotélica; mas uma potência de artista, que faz do mundo e da vida um teatro onde sempre estamos ensaiando:
"Essa natureza (…) não funciona sem nossa colaboração como princípio de individuação. Ela passa para a nossa carne e nosso sangue apenas através da vida mesma, sendo que cada um tem de experimentar por si mesmo o que corresponde à sua natureza e o que lhe faz bem. Só a natureza desenvolvida e experimentada dessa maneira fornece o critério pelo qual podemos medir o que combina com o nosso si-mesmo" (FETZ, p. 222).
Podemos entender, portanto, aquela ideia de natureza humana como algo que depende da própria pessoa. Nesse caso, o conhecer melhor que Montaigne se refere, está ligado àquele que nos faz conhecer a nós mesmos; porém, esse tipo de conhecimento não é um conhecer a natureza humana estanque que há em nós, mas, conhecer a força de experimentação que possuímos para criar a nossa própria natureza.
A partir disso, podemos afirmar que o conhecimento pedante é aquele que nos impede de fazer esse movimento de experimentação, que ofusca a nossa visão e nos deixa preso às representações sociais, pois o conhecimento pedante é um fetiche social, que funciona muito mais como reprodução, ou de um idioma que poucos conhecem ou de palavras de pensadores e mestres da tradição do pensamento, do que por uma utilidade para a vida. No entanto, aquele ofuscamento de nossa potência de experimentação, tem implicações na "saúde" das pessoas, pois:
"(…) assim como as plantas se afogam por excesso de humores e as lâmpadas por excesso de,óleo, assim também a ação do espírito por excesso de estudo e de matéria, o qual tomado e embaraçado por uma grande diversidade de coisas, talvez perca a maneira de se desenredar, e essa carga o mantenha encurvado e encarquilhado" (MONTAIGNE, p. 200).
Tirando um pouco da ironia, podemos dizer que o pedantismo é um manto sombrio que impede que as pessoas busquem a si mesmas, pois "atentamos para as opiniões e o saber dos outros, e isso é tudo. É preciso fazê-los nossos" (Idem, p. 205). Essa demasiada atenção naquilo que os outros dizem se torna um problema quando não dizemos nada acerca disso que os outros dizem, quando não constituímos para nós mesmos as nossas próprias opiniões. No fundo o pedante é alguém que tem em si a tradição, o excesso de conteúdo, o peso dos livros; mas não tem a si mesmo, não tomou para si as rédeas de sua própria vida, não se experimentou, não se ensaiou. Assim, uma pessoa "saudável", seria aquela que sabendo de si mesmo, toma para si a sua própria natureza, sabendo discernir daquilo que lhe serve e o que não lhe serve.
No fundo ao criticar o ensino de sua época, que em grande parte incha a alma dos estudantes ao invés de ampliá-la (Idem, p. 207), o filósofo francês está se questionando sobre a utilidade do conhecimento, como que dizendo que só serve aquele conhecimento que tem utilidade prática, por exemplo, não tem sentido ter a cabeça cheia dos conceitos principais daética aristotélica, se eu não os ponho em prática, se eu não me torno uma pessoa prudente; portanto, saber é viver aquilo que se sabe. Um pedante apenas repete, decora, já o sábio, após aprender, dá um sentido aquilo e transforma em parte da sua vida. Por isso, "não basta que nossa educação não nos estrague; é preciso que nos mude para melhor"(Idem, p. 209) – e mudar para melhor é tornar as pessoas mais fortes em relação a sua própria existência. Aquele "inchar a alma", fruto da educação daquela época, tornaria os homens "pesados" ao ponto de não fazerem nada por si mesmos, como se fosse preciso desinchar a alma na vida prática, colocando os ensinamentos em prática o estudante se torna leve, pois torna o conteúdo aprendido como parte de sua alma.
A educação na perspectiva de Montaigne é um processo de formação que toma os conteúdos apenas como meio e não como fim, o pedantismo, nos parece, estaciona e toma esse meio como um fim em si mesmo. Entretanto, a nossa ideia não é fazer uma atualização do pensamento do filósofo simplesmente, pois isso se figura impossível sem uma mediação com outros pensadores contemporâneos; mesmo assim, ao distinguir a erudição da sabedoria, Montaigne nos faz pensar em um processo formativo constituído apenas na retenção de conteúdo, que tem êxito quando o aluno transfere isso para uma avaliação, ou quando uma pessoa domina determinadas técnicas sem refletir muito sobre elas, como se confundíssemos erudição com sabedoria, tomando as duas como uma só. Parece-nos que o filósofo nos coloca uma pulga atrás da orelha ao nos levar a crer, com muitas ponderações é claro, que o pedantismo se transformou, em nosso tempo, parte da nossa formação social. Porém, não é nosso caso querer tomar o pedantismo de Montaigne, em uma leitura genealógica, como o princípio de nossa atualidade, é preciso dialogar com o autor e em uma perspectiva crítica, perceber aquilo que diz respeito diretamente ao nosso tempo ou não. O renascimento, como já sabemos, foi um tempo de crise, de mudanças de paradigmas, mudanças essas que se afiguram na atualidade, onde os discursos se tornaram anti-humanistas e, portanto, pós-modernos; por isso, é preciso entender a crítica à experiência formativa do renascimento como uma crise, que talvez ajude-nos a entender as crises de nosso tempo.
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